NOTÍCIAS DO CREA-RS
No dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o CREA-RS propôs uma discussão sobre o tema, cada vez mais necessário e urgente, o racismo estrutural.
No Sistema Confea/Crea, assim como em outras esferas sociais, o racismo estrutural também se manifesta pela presença muito pequena de conselheiros, inspetores, diretores e funcionários negros. Quanto mais se sobe na hierarquia, menos eles estão presentes. No dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, propomos uma reflexão sobre os fatores que levam a essa situação, assim como iniciativas que podem contribuir para a mudança necessária e para a construção de uma sociedade mais justa. Muito fortes, cenas de racismo são frequentes não só no Brasil, mas em todo o mundo. A boa notícia veio destas eleições, nas quais foram eleitos vereadores e vereadoras negros em cidades que nunca elegeram pessoas negras. Conseguimos reunir algumas vozes que por direito devemos ouvi-las. Nesta matéria, elas contam um pouco da própria experiência.
Dados no Brasil
Mais da metade da população brasileira é formada por pessoas negras. No Rio Grande do Sul, 18,2% da população se autodeclara negra, conforme a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Esses números não se refletem, entretanto, em muitas esferas de poder. Segundo dados da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os afrodescendentes gaúchos ocupam apenas 3,9% das vagas nas Câmaras Municipais, 1,8% na Assembleia Legislativa, 2,2% das prefeituras e não têm representante na Câmara de Deputados.
De acordo com o estudo Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, feito pelo Instituto Ethos em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pessoas negras ocupam 4,9% dos postos em conselhos adminis-trativos; 4,7% estão em quadros executivos; e elas integram, respectivamente, 6,3% dos cargos de gerência e 25,9% de supervisão. Além disso, pessoas negras ganham menos do que as brancas. Conforme o IBGE, em 2018, o rendimento de pretos e pardos era de R$ 934, enquanto brancos recebiam, em média, R$ 1.846.
Esses dados são a concretização do que o jurista e filósofo Sílvio de Almeida chama de racismo estrutural. Ou seja, para ele, o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, da forma como se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. Dessa forma, o racismo estrutural se concretiza nas desigualdades política, econômica e jurídica. E, ao ampliar a reflexão, essas disparidades atingem ainda mais mulheres negras e pessoas LGBTQI+, principalmente quando uma ou mais condições se cruzam, por exemplo, uma mulher negra, trans e moradora da periferia.
Vozes que têm direito à fala
Marcelo Silva, chefe do Núcleo de Protocolo, é funcionário do CREA-RS há 31 anos. Segundo ele, dentro da empresa, nunca vivenciou nenhum caso de racismo institucional, mas o racismo estrutural é visível. “É difícil de dizer que não existe o racismo estrutural dentro do CREA-RS, quando não vemos negros ocupando cargos de destaque em nossa Diretoria e nenhuma política de inclusão de engenheiros negros. O Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, mas, no Rio Grande do Sul, a população negra é de aproximadamente 20% e, devido à colonização europeia, esta visão colonial do tempo da escravidão ainda é muito forte”, explica.
O funcionário ressalta a importância de se refletir sobre esse dia e lembra sua origem. “O Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares na resistência à escravidão no Brasil.” A data foi escolhida pelos membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso realizado em São Paulo, no ano de 1978. A figura de Zumbi foi escolhida como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que os afro-brasileiros reivindicam.
“O Dia da Consciência Negra é importante para relembramos que a nossa sociedade foi construída por meio da escravidão. Por mais que melhorias e mudanças tenham acontecido, a falta de oportunidades para a população negra, o racismo presente nos detalhes do cotidiano e as tentativas de apagamento de cultura africana evidenciam que ainda temos um longo caminho a ser trilhado. É disso que se trata o Dia da Consciência Negra”, conclui.
Gizele Silveira Forte, chefe de núcleo de Recursos Humanos do CREA-RS, diz que, na verdade, há muitos profissionais negros e pardos dentro do Conselho. Entretanto, eles não estão nos espaços ocupados por engenheiros. "Temos profissionais negros dentro da engenharia, mas isso não é exclusivo da área da engenharia. Temos poucos médicos negros, poucos CEOs negros, em todas as grandes áreas os negros são minoria, embora a população brasileira seja em sua maioria negra", explica. Ela ressalta que, inclusive, há pouco tempo os negros eram minoria dentro das universidades também, cenário que vem mudando aos poucos, graças às políticas de cotas. Para ela, a falta de acesso à educação é a resposta para a pouca participação da população negra em todos os espaços da sociedade brasileira. "O racismo estrutural e a falta de acesso a níveis mais altos de educação impedem a população negra de alçar voos mais altos. Precisamos falar sobre racismo, todos os dias, não apenas em um único dia do ano. Todos os dias o espaço da população negra deve ser debatido, principalmente dentro das escolas", conclui.
A Eng. Agr. Kátia de Messa Anacleto é inspetora-chefe do CREA-RS em Alegrete e, ao longo dos seus cinco anos nessa ocupação, conheceu apenas um colega de inspetoria negro. Ela também nunca dividiu o espaço de trabalho com outra colega negra. Durante sua formação, não teve colegas negros. Hoje, ela diz que ainda é a única Engenheira Agrônoma negra de sua cidade.
Sobre essa falta de representatividade, Kátia ressalta que, quando falamos na presença de mulheres negras, a situação é ainda mais complicada. Por outro lado, se a participação da população negra nas esferas de poder ainda é pequena, “é muito grande a esperança de que possamos ocupar, sim, os espaços a que temos direito e venhamos a ter as mesmas oportunidades de todos os outros cidadãos”, diz. Apesar do otimismo, a Engenheira ressalta que, por enquanto, ainda é preciso lutar. “Ainda é preciso muita luta, muito esforço e sempre aproveitar cada oportunidade de fala para expor nosso anseio e nosso sonho de que um dia não sejamos medidos pelo nosso tom de pele e, sim, pela nossa capacidade”, destaca.
O caso de Kátia não é isolado. Muitas pessoas negras também são as únicas ou uma das poucas em seus cursos. “Ainda somos poucos, ainda encontramos uma resistência muito forte de parte da sociedade em abrir as portas e escalar muros…”, comenta a Engenheira. O cenário tem mudado com o passar dos anos, principalmente devido à política de ações afirmativas nas universidades, mas ainda há muito caminho pela frente.
O Eng. Agr. Roberlaine Ribeiro Jorge, primeiro reitor negro de uma universidade pública do Rio Grande do Sul e conselheiro suplente da Agronomia por dois mandatos (1999/2001 e 2002/2004), acredita que, em relação à falta de representatividade negra no Sistema Confea/Crea, um dos fatores determinantes é o baixo número de estudantes e professores negros nos cursos de engenharia. Segundo ele, este fato é mais uma prova de que realmente as políticas de ações afirmativas devem estar ativas e perdurar por um bom tempo.
“Eu considero que é uma das melhores iniciativas para que realmente haja um equilíbrio do número de estudantes, docentes e servidores de uma forma geral dentro dos cursos da engenharia como um todo”, ressalta. Ele diz que não é um caminho curto, mas essencial para que realmente tenhamos uma representatividade condizente com a participação da população negra na sociedade brasileira.
Josi Beatriz Viegas Cunha se formou em Engenharia Civil na PUCRS em 1993. Naquela época, ainda não existiam as políticas afirmativas como vemos agora. Quando passou no vestibular, se matriculou sem saber ao certo como faria para pagar a faculdade. Só foi possível que ela concluísse o curso porque conseguiu um crédito na Caixa Econômica Federal e trabalhou durante todo o período de estudo. Hoje, ela atua na Secretaria de Obras do RS.
Para ela, não há solução por outra caminho que não sejam as políticas de reparação. Só assim, veremos mais juízes, delegados, médicos e Engenheiros negros. “As ações afirmativas são para buscarmos tudo o que nos tiraram lá no começo da nossa história brasileira, quando não nos deram o direito de ter posse, emprego, terra, educação. Não queremos tirar nada de ninguém, nós só queremos ter oportunidade. A capacidade, já temos”, defende.
Para Rafael Silva de Lima, 24 anos, o sistema de cotas raciais foi de suma importância para sua vida acadêmica, pois possibilitaram que ele ingres-sasse em um dos cursos mais difíceis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele cursa Engenharia de Energia.
Desde que entrou na UFRGS, Rafael diz que também entendeu esses dados sobre a falta de pessoas negras na Engenharia na prática. “Desde o meu primeiro dia na Universidade, percebi que falta representatividade, não só pela circulação dos professores pelo campus, mas dentro da sala de aula percebi que haviam poucos negros para o número de alunos”, conta. Ele acredita que, com essas ações afirmativas, será possível ocupar esses outros espaços. A percepção do estudante sobre a falta de docentes também é sustentada por dados.
Rafael, além de cursar Engenharia de Energia na UFRGS, também trabalha como eletricista e faz curso de eletrotécnica. Durante a pandemia, com o ensino à distância, ele disse que teve mais dificuldades em conciliar as tarefas e decidiu trancar o curso. “Não sei se é trabalho deles se preocuparem com quem trabalha em turno integral e isso eu entendo, só que não posso deixar de trabalhar e também não vou parar de estudar”, explica. Ele não quer ser mais um aluno a entrar nas estatísticas de evasão e, para isso, se esforçará em dobro.
O papel das políticas afirmativas e a falta de representatividade na Engenharia
No Brasil, as ações afirmativas como conhecemos atualmente foram regulamentadas em 2012, com a Lei 12.711, a Lei das Cotas. Ela estabeleceu que as instituições de ensino superior deveriam reservar no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que fizeram o ensino médio em escolas públicas. Uma parte dessa porcentagem também precisa ser reservada para pretos, pardos e indígenas. Essa distribuição varia em cada estado, de acordo com os dados do IBGE sobre a presença de pretos, pardos e indígenas em cada população – 25% no caso da UFRGS.
Essas vitórias, contudo, não são suficientes. Os dados são referentes a universidades públicas. Quando falamos em ensino superior de modo geral, apesar de ter havido um aumento expressivo (de 74,6%) de alunos negros matriculados entre 2014 e 2018, pretos e pardos passaram de 22,1% para 35,8% de todo o corpo discente. Isto ocorre porque apenas 15% de todos os universitários estão em instituições públicas – os outros 85% estão em locais privados. Tendo em vista que a população brasileira é formada 54% por pessoas negras, segundo o IBGE, ainda é necessário que elas ocupem mais o ensino superior. Quando analisamos especificamente cada curso, o problema se agrava. Os cursos mais valorizados socialmente, com níveis de salários mais elevados e maior procura nos vestibulares, são aqueles em que a presença de pretos e pardos é menor ainda. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que, no Brasil, as áreas de estudo mais ocupadas por negros são as de educação e de serviços. No Rio Grande do Sul, são serviços e ciências sociais, jornalismo e informação. As Engenharias fazem parte do grupo de cursos com menos alunos negros matriculados. Na UFRGS, por exemplo, a Engenharia de Materiais é o curso com menor presença de estudantes negros: 92% dos alunos são brancos, segundo o Inep. No Brasil, nenhuma das engenharias tem mais estudantes negros do que brancos matriculados, de acordo com dados de 2016 do MEC. Sobre essa falta constante de representatividade, Josi diz que só se identificava com seu núcleo familiar. “Desde que a gente vai para a sala de aula, não tem nada que nos represente, as pautas que são tratadas na sala muitas vezes não falam da sua história, do teu jeito de ser. Tu vai trabalhar, tu não tem ninguém que possa te dar orientações, tu vai tentando ocupar o teu lugar”, conta. A Engenheira Civil relata que, durante toda sua formação, sentia duplamente essa falta de identificação: por ser mulher e por ser negra. Em sua formatura, apenas 10% dos formandos eram mulheres. Havia uma negra, Josi. Ainda assim, ela conta orgulhosa que foi laureada como melhor aluna da segunda turma de Engenharia Civil do ano de 1993. A primeira Engenheira da família e a terceira a ter um ensino superior completo. Josi lamenta que, em 2020, esse quadro ainda não tenha mudado, mas acredita que as ações afirmativas e a educação são os motores da mudança.
Dados do Censo da Educação Superior mostraram que, apesar do aumento de quase 75% de discentes pretos e pardos entre 2014 e 2018, a parcela de docentes aumentou apenas 8%. O País tinha 60.194 professores negros no ensino superior em 2014, o que representava 15,2% do total. O número subiu para 65.249 em 2018. Devido ao aumento em todo o corpo docente, o percentual de professores negros no ensino superior ficou em 16,4% Ao passo que a política de cotas para alunos em universidades foi oficializada em 2012, a obrigatoriedade de reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para pessoas negras foi estabelecida em 2014, mas ainda não demonstra resultados expressivos, principalmente em se tratando de cursos como Engenharia. Novamente, quando subimos mais ainda na hierarquia, os números diminuem expressivamente. Até 2020, o Rio Grande do Sul nunca tinha tido uma pessoa negra na reitoria de uma de suas universidades públicas. O Eng. Agrícola Roberlaine foi quem assumiu essa posição pela primeira vez na história, na Universidade Federal do Pampa (Unipampa). O reitor é um defensor dos sistema de cotas e, para ele, apesar de ainda termos muito o que aprender sobre as ações afirmativas, elas são um sucesso. “Nós vemos os estudantes negros e pardos que estão na universidade através das cotas, é nítido”, diz. Entretanto, acrescenta que a evasão é um dos grandes problemas que devem ser colocados em pauta. “Muitas vezes, essa evasão se dá por motivos que fogem da alçada da pessoa, principalmente por questões financeiras”, explica. Na UFRGS, os cursos com maior evasão, entre 2008 e 2019, foram Medicina, Engenharia Civil e Pedagogia. Na Engenharia Civil, a evasão de pretos e pardos é mais do que o dobro do que a dos universitários que entram via acesso universal, de acordo com um levantamento feito pela UFRGS. Tanto a dificuldade de acesso às universidades quanto a de permanência nelas devem-se à enorme desigualdade social entre negros e brancos no Brasil, características do racismo estrutural presente no país. Em geral, os pretos e pardos têm menos qualidade de vida no Brasil, considerando o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), indicador que mede a qualidade de vida das pessoas com base em longevidade, educação e renda e varia de 0 a 1 – quanto mais próximo de 1, melhor. Nacionalmente, o IDHM entre os brancos é de 0,816, enquanto o dos negros é de 0,734. No nosso Estado, onde a população negra é menor, a desigualdade é ainda mais expressiva: a diferença é de 0,810 para 0,725. Tendo em vista esses problemas, Roberlaine acredita que as políticas de cotas são parte de um conjunto de ações que devem caminhar juntas para aumentar a presença e a permanência de pessoas negras nesses espaços. “Além da reserva das vagas, tem que ter todo um programa para que, ao longo da universidade, o aluno possa ter a garantia, por exemplo, de restaurante universitário, de uma casa do estudante, deve haver políticas de bolsas dentro das universidades, para que o aluno possa ter mais um apoio na sua permanência. Então é importante a política afirmativa, mas ela, por si só, não resolve”, finaliza.
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