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Daer: História, Memória e Legado de Três Gerações

Na década de 1930, trafegar pelas estradas do Rio Grande do Sul era um desafio que exigia não só tempo, mas também bravura. Vias precárias e sem pavimentação dificultavam o transporte de pessoas e mercadorias, isolando o interior e comprometendo o progresso.

Foi nesse cenário que surgiu, em 11 de agosto de 1937, o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), criado pela Lei nº 750. Nascia o segundo órgão rodoviário do país, com o objetivo claro: planejar, construir e conservar as rodovias estaduais, promovendo a integração territorial e o desenvolvimento socioeconômico do Rio Grande do Sul.

Segundo o Engenheiro Civil Sandro Wagner Vaz dos Santos, atual diretor de Operações do Daer e superintendente da região de São Francisco de Paula, a história da instituição se entrelaça com a própria trajetória da sua família: “Meu avô, Alipio Alves dos Santos, iniciou em 1945 como operador de motoniveladora em Bagé. Depois, tornou-se chefe de grupo de máquinas. Era uma época em que abrir estradas de chão já era considerado o auge da carreira. Meu pai, Siloni Goulart dos Santos, entrou em 1957, também como operário, e acompanhou a evolução do Daer: das anotações feitas à mão às máquinas de escrever, dos rádios às equipes de pavimentação e pontes”.

As Primeiras Décadas: Pioneirismo e Grandes Obras

 Primeira rodovia pavimentada: ligação entre Rio Grande e Cassino 

 Primeira rodovia pavimentada: ligação entre Rio Grande e Cassino 

Ponte Ernesto Dornelles, no Rio das Antas 

Ponte Ernesto Dornelles, no Rio das Antas 

Desde o início, o Daer destacou-se pelo espírito inovador e compromisso com a Engenharia de ponta. Na década de 1940, entregou sua primeira rodovia pavimentada: a ligação entre Rio Grande e Cassino (ERS-734). Também iniciou a construção de uma de suas obras mais icônicas: a Ponte Ernesto Dornelles, no Rio das Antas. Inaugurada em 1952, a estrutura - conhecida como Ponte dos Arcos - foi a primeira do mundo com arcos paralelos.

 Ponte do Guaíba 

 Ponte do Guaíba 

Outro marco foi a substituição da antiga travessia de barcas entre Porto Alegre e Guaíba. A Ponte do Guaíba, inaugurada em 1958, entrou para a história, na época, como o maior empreendimento da América do Sul, construída com o esforço de mais de 3,5 mil trabalhadores.

Sobre essa fase, Sandro lembra que o pai descrevia o trabalho como extremamente braçal: “A rotina era difícil. Eles acordavam cedo e iam desbravar os campos, fazendo surgir novos caminhos. O Daer da época executava as obras diretamente, abrindo e conservando estradas”.

Décadas de Expansão: Integração Regional e Novas Fronteiras

Rodoviária de Porto Alegre 

Rodoviária de Porto Alegre em 1969 

Autódromo de Tarumã, em Viamão 

Autódromo de Tarumã, em Viamão 

Durante os anos 1960 e 1970, o Daer intensificou sua presença em todo o território gaúcho. Projetou e construiu a Rodoviária de Porto Alegre, considerada, em 1970, a mais moderna da América do Sul. No mesmo ano, entregou o Autódromo de Tarumã, em Viamão e inaugurou sua sede própria na Avenida Borges de Medeiros, na capital gaúcha.

Com a criação de acessos e o asfaltamento de rodovias estratégicas, a autarquia fortaleceu o escoamento da produção agrícola, fomentou o turismo e promoveu a mobilidade entre regiões. Um exemplo dessa característica é a Estrada da Produção (RS-13), hoje federalizada como BR-386.

Para Sandro, esses investimentos mostram o papel transformador do órgão: “Meu pai sempre dizia que o Daer crescia junto com o Estado. Quando ele começou, abríamos estradas. Depois vieram as pontes, os túneis, acessos a aeroportos. Tudo isso integrava regiões e movimentava a economia”.

Modernização e Novos Desafios

A partir da década de 1980, o foco se voltou à conservação e modernização da malha rodoviária, com destaque para sinalização, duplicações e melhorias em vias já existentes. Em 1984, o Daer realizou a primeira duplicação de rodovia estadual, na ERS-040, entre Porto Alegre e Viamão, respeitando as figueiras centenárias do trajeto.

Estrada do Mar em 1990 

 Estrada do Mar em 1990 

Estrada do Mar atualmente 

 Estrada do Mar atualmente 

Nos anos 1990, a ERS-389, Estrada do Mar, foi inaugurada, tornando-se alternativa de acesso ao litoral. Também foi nesse período que o órgão assumiu protagonismo no modelo de concessões rodoviárias, criando os primeiros polos rodoviários do país.

Sandro recorda que essa transição alterou profundamente o papel do órgão: "Com o tempo, deixou de ser executor para ser um gestor. Na década de 1990, surgiram os programas de concessão e, depois, os contratos de restauração e manutenção (Crema). A terceirização foi necessária: tínhamos 11 mil km de estradas estaduais e cada vez menos pessoal e equipamentos”.

Infraestrutura para o Futuro

Nos anos 2000 e 2010, o Daer se consolidou como referência em inovação técnica. Em 2005, inaugurou o Centro de Pesquisas Rodoviárias (CPR), com laboratórios voltados à qualificação de materiais e pavimentações. Em 2010, entregou a RSC-471, conectando o norte do estado ao Porto de Rio Grande.

Nesse período, dezenas de municípios gaúchos passaram a contar com acessos asfálticos, promovendo inclusão territorial. Houve ainda obras como a duplicação da ERS-509 (Faixa Velha de Camobi) em Santa Maria.

Sandro cita algumas rodovias em que trabalhou e que marcaram sua trajetória: “Participei da duplicação da ERS-734, em Rio Grande, e de obras na ERS-471, na ERS-265 e na ERS-020, em Cambará do Sul. São rodovias que ajudaram a integrar o estado e que guardo com muito orgulho.

Enfrentando a Calamidade: Enchentes e Reconstrução

 Ponte de Itati no período da enchente 

 Ponte de Itati no período da enchente 

 Ponte de Itati sendo reconstruída 

 Ponte de Itati sendo reconstruída 

O maior desafio da história recente do Daer ocorreu com a enchente de maio de 2024, considerada um evento geracional. Segundo Eng. Civ. Luciano Faustino, diretor-geral do Departamento, o diferencial em relação a outros desastres naturais foi a amplitude, considerando que atingiu quase metade do território gaúcho.

Em um primeiro momento, o trabalho concentrou-se em desbloquear rodovias e reconectar municípios isolados. A experiência revelou a importância de manter contratos de conservação ativos e de investir em rotas alternativas, como a ERS-437, que ganhou destaque durante a calamidade.

Outro aprendizado foi a cooperação entre órgãos. Daer, Brigada Militar, Dnit e Polícia Rodoviária Federal desenvolveram um aplicativo integrado, atualizado em tempo real com os pontos de bloqueio.

Esse aplicativo já conta hoje com cerca de 80 milhões de visualizações. Foi feito por uma necessidade extrema, mas se tornou tão útil que continua sendo atualizado e utilizado até hoje”, explica o Eng. Faustino.

Na reconstrução, o Daer trabalha com recursos do Funrigs, que irão totalizar cerca de R$ 14 bilhões até 2027. Para garantir agilidade, os contratos foram feitos em regime integrado, unindo projeto executivo e execução das obras. O diretor-geral destaca que os projetos já incorporam a nota técnica do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH/UFRGS), garantindo estruturas mais resilientes diante de chuvas extremas.

Apesar das críticas de lentidão, o Engenheiro defende que o prazo é técnico: “Um planejamento dessa magnitude seguramente só o projeto levaria um ano para ser feito. Nós demos quatro, cinco meses. É muito curto em se tratando de Engenharia, mas necessário diante da calamidade.”

O maior gargalo, segundo ele, está na falta de profissionais especializados e equipamentos para obras de contenção, já que centenas de pontos foram identificados simultaneamente. Mesmo assim, o cronograma prevê a entrega até 2027, prazo limite para uso dos recursos.

Quase 90 anos pavimentando o futuro

Para o Eng. Civ. Luciano Faustino, a mensagem que fica é clara: “A engenharia no Brasil é cíclica, acompanhando os períodos de crescimento econômico que influenciam diretamente na oferta de trabalho para os profissionais da área. As recentes calamidades mostraram, no entanto, de forma contundente o quanto os Engenheiros são fundamentais, pois é na hora da crise que eles estão na linha de frente, desbloqueando estradas, projetando soluções e executando obras”. Ele ressalta que “um país com infraestrutura resiliente é aquele que investe em formação, educação e na valorização dos engenheiros, profissionais que têm como missão resolver problemas presentes e futuros.” Nesse cenário, o Eng. Faustino destaca o papel essencial do CREA-RS, especialmente no Rio Grande do Sul sob a gestão da presidente, Engenheira Ambiental Nanci Walter, que tem defendido a categoria, promovido a Engenharia e mostrado à sociedade que ainda há muito a evoluir para garantir progresso e desenvolvimento sustentável.

 

De acordo com o Eng. Civ. Sandro, o Daer carrega um legado de Engenharia e dedicação coletiva: “O saber não ocupa espaço. Às novas gerações de Engenheiros eu digo: se qualifiquem e abracem a missão de trabalhar para o próximo. Muitas vezes não seremos reconhecidos, mas o resultado do nosso trabalho está na vida das pessoas, em cada estrada que conecta famílias, negócios e sonhos”.

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