top of page

Felipe Padilha Leitzke

Geólogo, Doutor em Geociências, Professor - Eng. Geológica, Ceng/Ufpel

Daniel Bayer da Silva

Geólogo, Doutor em Geociências, Pesquisador - NECOD/IPH/UFRGS

No limite do Antropoceno

A escala de tempo geológico representa, temporal e graficamente, as diferentes etapas de evolução do planeta Terra, desde o período de acresção planetária até os dias atuais, compreendendo um período de cerca de 4,5 bilhões de anos. Essa escala de tempo é um dos fundamentos da geologia moderna, essencial para reconhecermos eventos passados e nos posicionarmos na história. A noção de “tempo profundo” ou tempo geológico, percebida primeiramente pelo fundador da geologia moderna, o escocês James Hutton, em meados do século XVIII, influenciou não somente cientistas e filósofos, mas também a população em geral, na perspectiva sobre sua própria efemeridade. Por estar atrelada à base da pesquisa científica geológica, a escala do tempo geológico é um documento que necessita de uma constante atualização, a qual é mediada pela Comissão Internacional de Estratigrafia.

Os limites das idades e, consequentemente, as mudanças na escala de tempo geológico, baseiam-se na datação de eventos geológicos. Para tal, os geólogos empregam diferentes critérios, através de métodos relativos, como a sobreposição de camadas (estratos geológicos) ao longo do tempo, onde o que está mais abaixo é mais antigo do que aquilo que está acima; e absolutos, através do emprego do decaimento radioativo de núcleos atômicos instáveis em materiais geológicos. De fato, o objetivo é, eventualmente, posicionar toda a história da Terra de forma cronológica. Assim, os principais eventos identificados no registro geológico (gelo, rochas e fósseis), como a formação e deriva dos continentes, formação de cadeias de montanhas, vulcanismo, origem e evolução da vida e a variação climática do planeta, podem e devem ser correlacionados em escala global, o que é fundamental para a proposição de uma nova época geológica.

 

Não há dúvida, atualmente, sobre o impacto do ser humano aos ecossistemas e, consequentemente, ao clima no planeta, evidenciado, por exemplo, pelo aumento da ocorrência de desastres naturais. Existe dúvida, contudo, a partir de quando esse impacto se tornou significativo a ponto de tornar o ser humano um agente geológico, e se estaríamos ou não em uma nova época geológica. Em qualquer grau, contudo, é seguro afirmar que nosso impacto no planeta tenha iniciado já na Revolução Neolítica há cerca de 10 mil anos atrás, quando passamos de uma comunidade nômade para o domínio da agricultura, passando pelo desenvolvimento das primeiras cidades, até os dias atuais, onde os avanços para a construção de uma sociedade altamente desenvolvida trouxeram também drásticos efeitos, tais como as mudanças climáticas, extinções de espécies e aceleração e intensidade de processos naturais. Embora isso seja inegável, talvez a mais acirrada disputa acerca da mudança na escala de tempo geológico tenha ocorrido nas últimas décadas, a partir da proposição do Antropoceno como uma nova época geológica, exatamente pela dificuldade em estabelecer quando ela teria iniciado, além dos problemas em alterar as nomenclaturas historicamente já estabelecidas.

No limite do Antropoceno

​O termo Antropoceno foi primeiramente proposto na década de 1980 pelo biólogo americano Eugene Stoermer. Contudo, a ideia do ser humano como agente geológico é mais antiga do que isso, remontando ao final do século XIX e início do século XX, nos trabalhos dos geólogos Antonio Stoppani (1873) e Vladimir Vernadsky (1926). Após a virada do milênio e com a importância reconhecida das ciências ambientais, o Antropoceno popularizou-se na mídia e também na comunidade científica, tendo ganhado força através do trabalho “Geology of Mankind” (Geologia da Humanidade), publicado em 2002 pelo meteorologista holandês, ganhador do prêmio Nobel de química, Paul J. Crutzen, na revista científica Nature. Neste trabalho, Crutzen afirma que a rápida e exponencial expansão da população humana global, principalmente no último século, associada a explotação e demanda de recursos naturais (ex.: água, minerais metálicos, hidrocarbonetos), poluição e uso do solo para atividades como a construção civil, pecuária e agricultura, torna o ser humano definitivamente, um agente geológico, ou uma força capaz de modificar o planeta, equiparada aos processos da dinâmica terrestre, como tectonismo, terremotos e vulcões (Crutzen, 2002). Entre os efeitos das atividades humanas, destacam-se, por exemplo, a precipitação ácida, o afinamento da camada de ozônio e a emissão acelerada de gases do efeito estufa (ex.: CH⁴ e CO²), os quais afetam o clima global.

No limite do Antropoceno

A época atual, na escala de tempo geológico, é o Holoceno, que iniciou há cerca de 11 mil anos atrás (Figura 1), após o último período glacial e entrada do planeta em um período de aquecimento global natural, durando até os dias atuais. Mais precisamente, encontramo-nos na idade do Megalayano, batizado assim em virtude da ocorrência de um período de seca global há 4200 anos atrás, a qual impactou significativamente as populações da Mesopotâmia e do Egito, por exemplo, e encontra-se registrada nos espeleotemas da caverna Maunlu, no estado de Megalaia, na Índia. Tais alterações do clima ocorreram de uma forma natural, ou seja, a causa para essas mudanças climáticas foram exclusivamente naturais, como, por exemplo, a variação na inclinação do eixo terrestre, a precessão e excentricidade orbital do planeta, que por sua vez, faz com que a radiação solar atinja o planeta de forma heterogênea e até mesmo mudanças globais no padrão de circulação das águas marinhas. Mudanças climáticas globais são algo comum no registro geológico, em diferentes intervalos de tempo, com intensidades variadas. Dessa forma, para consolidar o efeito do ser humano sobre o planeta e também cunhar o Antropoceno, é necessária a definição de um ponto da história humana que deixaria uma evidência no registro geológico global para quem a possa encontrar daqui a milhares ou até mesmo milhões de anos (e.g., Lewis & Maslin, 2015).

Com essa atribuição foi criado em 2009, pela Comissão Internacional de Estratigrafia, o “Grupo de Trabalho do Antropoceno”, o qual teria como objetivo definir especificamente o que essa nova época geológica representaria. A primeira etapa para definir a nova época seria especificar exatamente o momento em que ela começou e se existe um registro global desse processo ou evento. Existiram, a partir disso, diferentes hipóteses para demarcar o começo do Antropoceno, incluindo, por exemplo, a colonização das Américas e extermínio de comunidades nativas, a revolução industrial, a era atômica, com a explosão de bombas nucleares e geração de radionuclídeos característicos, ou a grande aceleração econômica pós Segunda Guerra Mundial, quando a explotação de recursos naturais e a população cresceram de forma exponencial. Em outubro de 2023, o grupo de trabalho encaminhou, formalmente, o pedido de reconhecimento do Antropoceno para a Comissão Internacional de Estratigrafia. O marcador global escolhido para essa nova época é a localidade do Lago Crawford, no Canadá, onde as camadas sedimentares possuem um enriquecimento nos níveis de plutônio em virtude dos testes de bombas de hidrogênio e atômicas, além de também apresentarem assinaturas de carbono e nitrogênio vinculadas à queima de combustíveis fósseis e fertilizantes químicos. Caso fosse aprovado, o novo limite dessa época geológica chamar-se-ia de idade “Crawfordiana”, em homenagem a essa localidade (Figura 1).

Figura 1 - Recorte da escala de tempo geológico recente, adaptado da Carta Cronoestratigráfica Internacional (https://stratigraphy.org/chart) considerando o intervalo desde o começo do Mioceno, que ocorreu 23 milhões de anos (Ma) atrás, até o presente. A proposição do Antropoceno como nova época geológica está representada na sucessão do Holoceno seguindo Waters et al. (2023a).

Recorte da escala de tempo geológico recente, adaptado da Carta Cronoestratigráfica Internacional

Contudo, recentemente, em março de 2024, após quase duas décadas de discussão, a proposta do Antropoceno como época geológica foi rejeitada, em uma votação praticamente unânime dentro da Comissão Internacional de Estratigrafia (IUGS, 2024). Conforme o entendimento desta Comissão, quando comparado à escala de tempo geológico, o registro de 15 cm de sedimento do Lago Crawford ainda é insuficiente para estabelecer uma nova época geológica. Embora tenha sido rejeitada desta forma, o termo “Evento Antropoceno” é sugerido pela Comissão Internacional de Estratigrafia, similarmente ao já empregado para eventos marcantes na história do planeta, mas que não definem uma época ou idade geológica, tais como o “Grande Evento de Oxigenação” que ocorreu há cerca de 2.4 bilhões de anos, quando a atmosfera do planeta passou a ter oxigênio livre, fundamental para a vida, ou a explosão Cambriana, quando os organismos multicelulares multiplicaram-se para dar origem a formas de vida complexas, além do Younger Dryas, evento de resfriamento ocorrido centenas de anos antes do início do Holoceno. Isso serviria para que cientistas e o público em geral pudessem descrever o impacto do ser humano sobre o planeta.

É importante ressaltar que não há discussão científica em aberto em relação ao efeito do ser humano sobre o planeta e o clima, o que é consenso. A discussão ocorre em relação ao fato do registro desse impacto no planeta ser ou não longo e global o suficiente para ser representado na escala de tempo geológico. De fato, as mudanças climáticas causam efeitos em dezenas ou centenas de anos, o que é rápido do ponto de vista geológico. Tais efeitos são tragicamente visíveis, por exemplo, nos eventos extremos registrados recentemente no Estado do Rio Grande do Sul em 2023 e 2024. Dessa forma, embora ainda não haja o suficiente para sustentar a definição de uma nova época geológica chamada Antropoceno, o termo serve, informalmente, para equiparar o ser humano às forças geológicas. Caso nossa espécie sobreviva por milhões de anos, irreversivelmente veremos o Antropoceno consolidar-se. Talvez a denominação ou a definição de um começo do registro para o Antropoceno seja um debate meramente acadêmico, mas as mudanças climáticas que estamos causando como espécie e a priorização da preservação ambiental são urgentes e precisam de nossa atenção, sob pena de, permanentemente, colocarmos um limite final ao Holoceno como sendo a nossa própria extinção em massa.

REFERÊNCIAS

Crutzen, P.J. (2002). GEOLOGY OF MANKIND. Nature, 415, 23 (2002). https://doi.org/10.1038/415023a

Lewis, S.L.; Maslin, M.A. (2015). DEFINING THE ANTHROPOCENE. Nature Perspectives, 519: 171-180. doi:10.1038/nature14258

Waters et al. (2023a). THE ANTHROPOCENE EPOCH AND CRAWFORDIAN AGE: PROPOSALS BY THE ANTHROPOCENE WORKING GROUP. doi: https://doi.org/10.31223/X5VH70

Waters et al. (2023b). THE ANTHROPOCENE EPOCH AND CRAWFORDIAN AGE - PART 1: ANTHROPOCENE SERIES/EPOCH: STRATIGRAPHIC CONTEXT AND JUSTIFICATION OF RANK. doi: https://doi.org/10.31223/X5MQ3C

Waters et al. (2023c). THE ANTHROPOCENE EPOCH AND CRAWFORDIAN AGE - PART 2: DESCRIPTIONS OF THE PROPOSED CRAWFORD LAKE GSSP AND SUPPORTING SABSS. doi:https://doi.org/10.31223/X5RD71

IUGS - International Union of Geological Sciences. (2024). THE ANTHROPOCENE: IUGS-ICS STATEMENT OF MARCH 20, 2024. Disponível em: https://www.iugs.org/_files/ugd/f1fc07_ebe2e2b94c35491c8efe570cd2c5a1bf.pdf

© 2022 CREA-RS. Todos os direitos reservados.

bottom of page