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Nossa Ferramenta é a Solidariedade, Nosso Trabalho é a Reconstrução

Por Jô Santucci / Jornalista

FOTO AMANDA PEROBELLIREUTERS.jpg

Há cem dias, o Rio Grande do Sul passava por uma das maiores tragédias da história do Brasil, que deixou um rastro de destruição e sofrimento, afetando milhares de pessoas e causando danos incalculáveis. Já há algum tempo o drama das inundações ainda desafia especialistas e, principalmente, o poder público, pois pode ser resultado da ocupação de áreas que pertencem ao rio, do desrespeito aos ciclos naturais dos ambientes aquáticos e da falta de manutenção dos sistemas de proteção contra enchentes. E as águas não precisam de mandado para reassumirem suas posses.

Os temporais que provocaram alagamentos sem precedentes causaram a morte de 182 pessoas e algumas ainda estão desaparecidas. A reconstrução do Estado já começou, mas ainda levará um tempo, pois a geografia mudou muitas regiões. Os estragos estruturais, como casas, estradas, pontes, mudaram o dia a dia das pessoas e desafiam todos os poderes.

Em tempos de mudanças climáticas, o processo de reconstrução não se limita simplesmente à restauração das áreas afetadas, mas também exige uma profunda reflexão sobre nossas práticas e políticas.

Reconstruir implica repensar nossas abordagens e adotar medidas sustentáveis e proativas para enfrentar os desafios ambientais e sociais que surgem. São desafios urgentes e inegáveis para a sociedade que mostram a importância da Engenharias, Agronomia e Geociências em enfrentar e mitigar os efeitos devastadores desses fenômenos.

Em meio a essa tragédia, surgiram histórias inspiradoras de empatia e resiliência na prática. A solidariedade e o espírito de colaboração vindos de todos os cantos do Brasil foram fundamentais para amparar a população. Cada gesto de ajuda fez uma diferença significativa na vida de muitas pessoas.

E o CREA-RS não mediu esforço para oferecer auxílio à população gaúcha para superar os momentos desafiadores. Desde o início prestou apoio e assistência aos municípios, governo e comunidades, por meio de seus agentes fiscais regionais que, voluntariamente, utilizaram os veículos oficiais para oferecer suporte nas cidades onde o Conselho possui Inspetorias e que não se tem acesso a partir da sede em Porto Alegre.

Paralelamente, a presidente do CREA-RS, Eng. Amb. Nanci Walter, batalhou e conseguiu que a ART Humanitária fosse aprovada por unanimidade no Plenário do Confea, com validade de 180 dias. Desta forma, o Sistema Confea/Crea contribui para que a emissão de ARTs nos casos específicos para o setor público, envolvidos direta e indiretamente na reconstrução de rodovias e pontes, por exemplo, envolvam as profissões abrangidas pelo Sistema profissional.  

Criou o Programa Reconstruir-RS, mobilizando os profissionais voluntários para prestar apoio técnico, após enchentes, em cinco municípios: Sinimbu, Venâncio Aires, Vale do Sol, Putinga. Após 21 de junho, com o edital do governo estadual, os voluntários atuaram somente em prédios públicos de Canoas, escolas e Unidades Básica de Saúde. Nestas ações estiveram 192 voluntários, 780 vistorias técnicas realizadas, 708 laudos técnicos entregues, representando R$ 350 mil de economia para o Estado.  

No âmbito governamental, foram agilizados ainda Termos de Cooperação Técnica com as Secretarias Estaduais de Habitação, de Obras e também com a de Logística e Transportes, visando acelerar a inspeção e elaboração de laudos das propriedades nos municípios mais afetados pelas chuvas e inundações.  

Para a presidente Nanci, a colaboração entre os órgãos governamentais, as entidades profissionais e a sociedade civil foram essenciais para superar os obstáculos que se apresentaram. “O Sistema Confea/Crea esteve ao lado do Rio Grande do Sul no momento difícil e permanecerá firme no apoio às iniciativas de reconstrução e recuperação”, ressaltou. 

Segundo ela, como Conselho profissional, é preciso ir além e pensar o depois. É necessário falar sobre o planejamento da reconstrução do Estado. “Temos o dever de trazer para o debate uma questão crucial: quando os profissionais da Engenharia, Agronomia e Geociências serão ouvidos? Quando as soluções técnicas serão valorizadas e atendidas?”, questiona. 

 

O debate é outro neste instante e temos que estar preparados para ele, porque é mais fundamental ainda, pois continuamos a falar de vidas.  

“O parecer técnico dos profissionais do Sistema Confea/Crea antes de qualquer serviço e atividade técnica é coisa séria. É para ser cumprido e atendido à risca para garantir a segurança da população”, aponta.  

“Chega da precarização na engenharia. Chega de achar que um parecer técnico é uma receita de bolo. Chega de achar que um laudo é algo que você escreve num papel por pura formalidade. No orçamento, é necessário destaque para a manutenção dos equipamentos de proteção e prevenção contra enchentes, obras de artes”, defende. 

 

Aponta que o laudo técnico é um trabalho baseado em métodos técnicos e normativos, não uma opinião, não um achismo, mas agrega conhecimento e ciência. “Não é gasto, é investimento!”, relata. 

Nossa Ferramenta é a Solidariedade, Nosso Trabalho é a Reconstrução
Nossa Ferramenta é a Solidariedade, Nosso Trabalho é a Reconstrução

PARECER TÉCNICO NÃO É UMA RECEITA DE BOLO

PARECER TÉCNICO NÃO É UMA RECEITA DE BOLO

Defende ainda maior orçamento para manutenção dos equipamentos e prevenção contra alagamentos. “Em vários momentos, durante as enchentes, vi as pessoas questionando onde estavam os engenheiros que não viram que tudo isto poderia acontecer. O profissional fala, diz o que pode ou não pode. Os nossos governantes têm que ouvir quem faz parte do quadro técnico das prefeituras, dos Estados, do governo Federal. Se é possível construir ou não. Se falta manutenção. O que tem que fazer. Mas o conhecimento técnico muitas vezes não é considerado. E é onde está a garantia da segurança”, pontua, informando que agora estão valorizando as profissões do Sistema Confea/Crea, as pesquisas das universidades.  

 

“Quando os municípios vão fazer os seus planos, o PPA, PPRA, têm que destinar mais dinheiro para a manutenção dos equipamentos de proteção e prevenção contra enchentes. Tem sim que destinar mais recurso para a manutenção das Pontes (Obras de Arte). Não podemos consertar o telhado quando não está chovendo. Além disso, queremos bons profissionais nas prefeituras e nos governos estadual e federal. Precisam ser sim valorizados. Não há como querer que desenvolva cidades, que façam projetos, se não são valorizados”, destaca. 

Como Engenheira Ambiental e com experiência em discussão do Plano Diretor dentro do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Esteio, onde reside, ressalta que o tema demanda a participação dos profissionais do Sistema Confea/Crea.  

“O envolvimento dos profissionais não deve estar atrelado somente quando estão à frente das Inspetorias em seus municípios. Muitos colaboram com seus conhecimentos técnicos participando em outras entidades integradas à sua comunidade local”, aponta. “Muitos estão representando o CREA-RS”, complementa, ressaltando que somente com essas participações efetivas e proativas é que a sociedade perceberá a necessidade e a segurança que a atuação do Conselho representa nas decisões políticas e não só em âmbito local. 

Salienta ainda que é nos Planos Diretores Urbanísticos que os profissionais da área tecnológica podem ser os atores. “Há situações em que utilizamos nossos conhecimentos para realizar a leitura técnica de temas, como mapas temáticos, tabelas e gráficos que servirão de subsídios para o conhecimento da comunidade”, avalia. A Engenheira esteve na votação do Comitesinos, em 2015, na qual foi aprovado o primeiro mapeamento das áreas inundáveis do Rio Grande do Sul. “Essa decisão do Conselho influencia diretamente a questão do uso e ocupação do solo, criando um conceito para as áreas de expansão urbana sujeitas à inundação“.

“Em 2015, eu consegui sensibilizar sobre a planície baixa do Rio dos Sinos. Sempre que olho toda aquela parte Oeste de Esteio que não foi construída desde 2015 eu, internamente, tenho um orgulho porque ali estaria tudo embaixo da água. A água veio até a BR e só não subiu porque é bem mais alto. Foi proibida a edificação de moradias em áreas de vulnerabilidade e, consequentemente, exposição de pessoas a situações de risco de toda ordem provocadas pelas cheias do Rio dos Sinos”, explicou. 

Ressalta que em todo o estado profissionais se desdobram entre as suas atividades, família, abrem mão do seu lazer, e estão participando dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente, de Desenvolvimento Urbano e de Habitação. “São os três Conselhos que as nossas profissões mais participam. Precisam ser ouvidos como foi aqui em Esteio”, explica.

Um dos instrumentos legais previstos no gerenciamento nacional de recursos hídricos são os planos de bacia hidrográfica que coloca as diretrizes daquela bacia e o que pode e não pode ser feito. Por isso o Comitesinos contratou um estudo de mapeamento, de zoneamento mostrando até onde a água chegou e como seria no futuro. 

O estudo foi desenvolvido pelo Eng. Civ. Carlos Bulhões, então, professor do IPH, hoje reitor da UFRGS. Ele fez um estudo de modelagem matemática, que é um software, simulando até onde o Rio do Sinos poderia chegar. Ele deu o nome de mancha de inundação. “Essa mancha de inundação serviu como base de um estudo técnico para que o Ministério Público, através do promotor doutor Ricardo Rodrigues, decidisse que todos os municípios integrantes da planície baixa do Rio dos Sinos e que estão dentro dessa mancha de inundação, não vão poder fazer mais nenhum licenciamento ambiental ou urbanístico, ou seja, não construirão mais nada”, ensina. 

 

Para a presidente Nanci é fundamental olhar a engenharia como se olha para medicina ou o direito. "Precisamos defender as prerrogativas da engenharia”, pondera. 

 

Com a questão dos eventos climáticos extremos, as melhores soluções serão dadas pela engenharia, meteorologia e todas as geociências. 

 

“Não podemos mais tomar decisões isoladas, a gente tem que aprender. Aqui no Rio dos Sinos, o município recebe toda a contribuição desse manancial e de outras cidades. Eu não posso mais pensar em algo que vou fazer a jusante ou a montante de um manancial sem me preocupar com as cidades. Esteio sofre com o que está acontecendo em São Leopoldo, assim como São Leopoldo sofre com o que está acontecendo numa cidade que está acima desse manancial. A gente precisa começar a pensar em conjunto e não pode mais achar que construir algo na minha cidade não vai afetar a cidade ao lado ou duas e três depois, não adianta mais. Eu me solidarizo com os prefeitos, pois vai ser um desafio imenso. Mas a gente precisa repensar o reconstruir, inclusive, refletir sobre os eventos climáticos que estão aí e a gente não pode mais negar”, destaca.

“A gente vai precisar do olhar atento de todas as engenharias porque a nossa profissão é multidisciplinar. E é assim que nós vamos trabalhar para a reconstrução do nosso Estado”, finaliza. 

SISTEMA DE PROTEÇÃO CONTRA ENCHENTES EM PORTO ALEGRE E MANUTENÇÃO

O sistema contra enchentes na capital inclui 68 km de diques, internos e externos. São estruturas de proteção que bloqueiam a passagem da água, visando evitar inundações, entre os quais o Muro da Mauá, que representa 4% da extensão dos diques. Há comportas que, em tempo seco, permitem o deslocamento de pessoas e veículos. Na ocorrência de uma cheia, essas aberturas devem ser fechadas com antecedência. A proteção foi estabelecida para o nível das águas na cota de 6 metros, tomando como referência a cota máxima da enchente de 1941 acima no nível do Guaíba (1,75 m) e adotando uma margem de segurança de 1,25 m. 

Eng. Civ. Joel Avruch Goldenfum

O Eng. Civ. Joel Avruch Goldenfum, diretor do IPH e secretário-executivo do Comitê Científico do Plano Rio Grande, ao avaliar a questão do Muro Mauá, citou o aumento da população. “Em 1941, eu não sei a população das outras cidades, mas Porto Alegre havia menos de 280 mil habitantes. Hoje tem quase 1 milhão e meio, quer dizer, arredondando são cinco vezes mais população e eu imagino que seja parecido nas outras cidades também. Essa ocupação muitas vezes se deu em áreas de risco de inundação”, comentou, destacando a necessidade de rever a questão de áreas de risco e os planos diretores das cidades para que a ocupação se dê em áreas menos propícias. 

“Mas sistema nenhum funciona sem manutenção. Houve problemas de manutenção em 2023, em setembro e novembro a gente já viu que aconteceu a passagem de água pelas comportas, por exemplo, então isso deveria ter sido vedado. Nós ainda não sabíamos, quer dizer, até sabíamos que em 2015 teve problema com bombas, a gente sabia que poderia haver problemas com bombas, mas isso não é dessa, isso já vem de algum tempo”, lamenta. 

Para ele, o Rio Grande do Sul viveu o pior evento climático. “Tínhamos a memória de 1941 e 1967 e, para cá, nada. Antes disso nós tivemos só quatro eventos em que a água passou por cima do cais do porto, que foram em 1928, 1936, 1941 e 1967. Agora nós tivemos em sete meses três eventos que passaram: setembro de 2023, novembro de 2023 e maio de 2024”, detalha. 

Segundo o professor, o muro tem menos de 3 km. O sistema todo tem 68 km. Uma parte, 24 km, é externa, como se fosse uma muralha de proteção à cidade de Porto Alegre. Os outros 44 são dos riachos que afluem para o Guaíba. “Se não tivesse, a água entraria, por exemplo, na Avenida Ipiranga, no Arroio Dilúvio. O Guaíba subiu, a água entra pelo Arroio Dilúvio. Se a Avenida Ipiranga não tivesse bordas altas, a água iria entrar pelo Arroio Dilúvio e invadir por ali. Então, a Avenida Ipiranga são dois diques, um de cada lado do Dilúvio, impedindo que o mesmo extravasasse. Quer dizer que o Dilúvio não pode extravasar? Pode acontecer, mas se não tivesse, aconteceria muito mais frequentemente. Com qualquer subida do Guaíba, o Dilúvio extravasaria. Então, somando tudo, são 44 km de diques internos, um dos quais é o Dilúvio, mas tem vários outros arroios. E 24 externos, desse sistema um pedacinho bem pequeno, menos de 3 km”, explica, ressaltando que um conjunto de fatores contribuíram para a ampliação dos efeitos da catástrofe. 

Frente a esse cenário, de acordo com o professor, a revisão e manutenção do Sistema de Proteção contra Inundações de Porto Alegre precisam ser pensadas de forma integrada e estratégica, por meio de ações que incluam um programa permanente de manutenção do sistema contra as cheias, abrangendo a verificação das cotas e da estrutura dos diques; a manutenção do Muro da Mauá, das casas de bombas e dos condutos forçados; treinamento de equipes para a operação do sistema, incluindo execuções periódicas de abertura e fechamento das comportas, testes de funcionamento das bombas e dos motores; capacitação de pessoal técnico nas áreas envolvidas, com o foco em cultura de prevenção; programas de educação para criação e desenvolvimento de cultura de prevenção, com o desenvolvimento da percepção do risco de desastres, incluindo técnicos, tomadores de decisão e população em geral; ações de preservação da memória da população; e criação de um fundo permanente para garantir a disponibilidade de verbas para execução dos planos propostos. 

Em um esforço notável de contribuição acadêmica, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colaboradores lançaram o "Repositório de informações geográficas para suporte à decisão – Rio Grande do Sul 2024". A plataforma centraliza dados cartográficos da tragédia e oferece informações detalhadas das áreas mais afetadas, abrangendo a Região Metropolitana de Porto Alegre, o Vale do Taquari, o Vale dos Sinos e a Região Sul do estado.

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