Eng. Agr. Dr. Carlos Nabinger
Faculdade de Agronomia - UFRGS
Situação das pastagens naturais do RS e suas potencialidades
O passado deve ser a base para entender o presente e planejar o futuro. Por isso é importante lembrar que o fator determinante para que a pecuária fosse a primeira atividade econômica regional foi a existência de ecossistemas predominantemente campestres em todo o território sul brasileiro. Condicionantes edáficos e climáticos nos brindaram com uma vegetação de campo extremamente rica (cerca de três mil espécies), substrato ideal para a herbivoria. O clima frio e seco predominante há mais de 14 mil anos antes do presente (AP) é que determinou esse tipo de vegetação. Somente a partir de cerca de quatro a cinco mil anos AP, o aumento das precipitações e gradual elevação da temperatura, permitiu o avanço das florestas sobre os campos. Portanto, tanto os campos do bioma Mata Atlântica como do bioma Pampa, são muito mais antigos que as florestas, o que deve nos alertar para a necessidade de conservar, pelo menos em boa parte, aquela vegetação que a natureza julgou mais adequada.
Além disso, essa vegetação coevoluiu com o pastejo, inicialmente da megafauna presente até 8,5 mil anos atrás, substituída mais tarde por herbívoros de menor porte (veados, emas capivaras, antas, etc.) encontrados quando da introdução do gado pelos jesuítas no início do século XVII. Por essa razão, a inclusão do gado doméstico foi uma decisão lógica e até necessária uma vez que o pastejo é indispensável para manter a vegetação em equilíbrio. No entanto, por ter sido uma decisão empírica em termos de lotação, talvez seja esta a causa de um dos grandes problemas atuais que é a degradação destes pastos por superpastoreio, levando a baixos retornos econômicos e a sua substituição por atividades mais rentáveis no curto prazo.
Mas também é preciso reconhecer que tardamos muito a quantificar o alto valor que estes ecossistemas apresentam tanto na produção de bens comercializáveis (carne, leite, couro, lã), como na prestação dos demais serviços ecossistêmicos (SES), como o sequestro de carbono, melhoria da qualidade do solo, manutenção e qualidade dos mananciais hídricos, preservação dos tão necessários polinizadores, preservação de paisagens, entre outros. E isto tem levado a decisões sobre o uso da terra, que determinaram a supressão da sua maior parte, restando menos de 30% de sua cobertura original.
Assim, tanto a falta de pastadores como o excesso podem levar a vegetação campestre a uma condição indesejável sob o ponto de vista tanto da produção animal como de SES. Determinar a carga animal mais adequada foi a preocupação da pesquisa a partir dos anos 1980, levando o grupo liderado pelo prof. Gerzy Maraschin (UFRGS) a implantar experimento (ainda existente) de controle da oferta de forragem (OF = relação entre a carga animal e a disponibilidade de pasto). Os resultados levaram à conclusão de que os campos podem produzir muito mais do que se estava produzindo, à condição de manter uma OF quatro vezes maior do que a capacidade de ingestão dos animais, ou seja, uma oferta diária de 12% do peso vivo em termos de matéria seca. Em relação a uma baixa oferta (4% PV), isso significa passar de 60-70 kg de produção de peso vivo por ha/ano para cerca de 140-150 kg/ha/ano. Ou seja, mais que dobrar a produção animal, apenas controlando a carga animal em relação à disponibilidade de forragem. O aumento da renda advém da maior produção sem adicionar custos, além de baixo risco. E ainda com ganhos adicionais como maior taxa de crescimento do pasto (resultante da maior área foliar residual e maior fixação de carbono atmosférico), maior diversidade florística, maior cobertura do solo, aumento da matéria orgânica (sequestro de carbono), maior taxa de infiltração e capacidade de armazenamento de água no solo. Ou seja, aumentando os SES de provisão, de regulação e de suporte, além é claro, dos serviços culturais através da manutenção da paisagem e da cultura regional.
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Mas foi possível ir além, através do entendimento do efeito da estrutura do pasto no comportamento ingestivo dos animais. Nossos campos apresentam uma estrutura em duplo estrato: o inferior formado por espécies de baixo porte, tipo gramado, como grama forquilha e grama tapete e o superior formado por plantas que formam touceiras como capim-caninha e barba-de-bode. Estas “macegas” quando florescidas têm baixa qualidade e interferem no processo de colheita pelos animais. Pastejo mais intenso no início da primavera antes que elas floresçam, impede que encanem, permanecendo em estágio vegetativo no restante do ano e sendo consumidas. A maior carga animal na primavera (8% de OF), altera favoravelmente a estrutura e não prejudica o ganho individual e o retorno aos 12% OF no restante do ano, permitindo alcançar patamares de produção antes inimagináveis para campo nativo (mais de 200 kg de ganho de peso vivo/ha/ano, com ganho médio acima de 400 g/cab/dia). Com efeitos positivos sobre a composição botânica e, ainda, sem adicionar custos.
Este controle adequado da OF gerou parâmetros práticos que facilitam o ajuste da carga e controle da estrutura. Estes indicadores são a altura média do estrato inferior que deve se manter ao redor de 10-12 cm e a frequência de touceiras, que não deve ser superior a 35-40%.
Naturalmente, outras estratégias são igualmente necessárias. A adequada subdivisão do campo conforme tipo de solo/vegetação e disponibilidade de água e sombra é fundamental para evitar áreas de rejeição e super pastejadas no mesmo potreiro. Possibilita alocar categorias animais nutricionalmente mais exigentes como terneiros ao desmame, novilhas em recria ou novilhos em terminação, nos potreiros de mais qualidade, melhorando suas performances. Também é imprescindível para poder diferir potreiros em períodos de crescimento do pasto, levando os animais destes potreiros diferidos para o restante da área pastoril, ou seja, ajustando a carga nas demais áreas à essa nova disponibilidade de forragem. Nos potreiros diferidos haverá um acúmulo de forragem (reserva forrageira) a ser utilizada em períodos posteriores quando o crescimento for menor do que a demanda. O diferimento ainda permite aumentar o banco de sementes no solo, as reservas de carboidratos das plantas, o sistema radicular, melhorando as características do solo com aumento da matéria orgânica e da capacidade de armazenamento de água.
Até aqui vimos as possibilidades para alcançar o potencial dos campos nativos (200-230 kg PV/ha/ano) sem qualquer insumo externo, ou seja, apenas atuando sobre os processos de crescimento do pasto, basicamente mantendo maior área de folhas verdes e controlando a estrutura via ajuste da carga animal. Mas, pode ser necessário/desejável aumentar a capacidade de suporte do sistema e/ou melhorar aspectos nutricionais. Neste caso, tecnologias que utilizam insumos como adubos e corretivos ou a adubação mais a sobressemeadura de espécies hibernais ou mesmo a irrigação, podem ser possiblidades interessantes como parte do sistema, como demonstrado nas opções 3 a 6 da Figura 1.
Figura 1. Valores de produção animal em resposta à intensificação tecnológica via controle de processos e via controle de processos mais adição de insumos externos em campo nativo do RS (adaptado de Jaurena et al., 2021)
Esta figura sintetiza as possibilidades até aqui discutidas, diferenciando tecnologias de processos daquelas que envolvem o uso de insumos. Mas, também evidencia os efeitos sobre os SES. Estes apresentam resposta crescente à intensificação tecnológica via controle dos processos e uma resposta decrescente, embora ainda não claramente definida quanto a seus valores, com a intensificação via insumos, em função da diminuição da biodiversidade.
A opção pelo uso de insumos depende, obviamente, da relação custo-benefício. O custo dificilmente pode ser muito alterado para um dado nível de insumos e por isso devemos maximizar os benefícios, isto é, otimizar a produção animal – que é o que paga conta - através da colheita adequada da forragem adicional produzida, via correto ajuste da carga. Além disso, a eficiência da categoria animal envolvida, genética e sanidade também são fundamentais.
Finalmente, é importante salientar que o rateio dos custos da adubação deve ser aplicado sobre todo o sistema e não apenas na área intensificada. Por exemplo, num sistema de ciclo completo, a adubação e sobressemeadura de cerca de 20% da área pastoril será utilizada inicialmente com a terneirada pós desmame e, mais tarde, com as novilhas a serem entouradas e/ou novilhos em terminação. Além do benefício direto às categorias envolvidas, estas áreas também funcionam como facilitadoras do ajuste da carga no restante da propriedade, devido a sua alta capacidade de suporte, com reflexos positivos nos parâmetros gerais do sistema, como taxa de desmame, idade à primeira monta e idade de abate.
Os valores apresentados resultam de várias décadas de pesquisa (sintetizados em Carvalho et al., 2019), demonstram o enorme potencial de resposta do campo nativo e deveriam permitir ao produtor refletir melhor sobre a validade de supressão de seus campos em favor de monoculturas de maior risco econômico e assegurado dano ambiental. A supressão de uma flora extremamente rica tem consequências sobre a fauna, a microflora e microfauna e, por sua vez, sobre os SES.
Por último, cabe ressaltar a qualidade superior da carne aí produzida, quanto à composição em ácidos graxos, conforme demonstram estudos locais, o que determinaria agregação de valor ao produto. Juntamente com o pagamento pelos SES, algo muito próximo de ocorrer, a pecuária sobre campo nativo pode ser tornar um negócio altamente atraente. Para quem ainda tiver campo!
Infelizmente o campo ainda é visto como sinônimo de atraso e como uma alternativa pouco produtiva, em que pese todas as evidências científicas em contrário, tanto do ponto de vista econômico como ambiental. Por consequência, praticamente não existem políticas de largo prazo visando colocar os campos na base do “ordenamento territorial” (que inclui necessariamente outros usos da terra). Por essa razão precisamos maior conscientização do produtor, dos técnicos e dos tomadores de decisão, além da sociedade urbana, sobre o potencial produtivo e o papel fundamental que os campos representam no equilíbrio ambiental e, por consequência, em nossa qualidade de vida. Por isso, os seus remanescentes podem e devem ser melhor utilizados através de práticas simples e de baixo custo, enquanto muitas outras áreas necessitarão ser recuperadas urgentemente para retomar os muitos SES perdidos em nível regional.
Bibliografia citada
Carvalho, P.C.F et al. (org.) 2019. Nativão: + de 30 anos de pesquisa em campo nativo. Uruguaiana: Viapampa. 159 p.
Jaurena, M. et al., 2021. Native Grasslands at the Core: A new paradigm of intensification for the Campos of Southern South America to increase economic and environmental sustainability. Frontiers in Sustainable Food Systems, v. 5, p.1/547834-15).
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